terça-feira, 3 de maio de 2011

O que cabe em 1,60m

Foto de Barrie McCulloch, assistente de direção de "360"

Desde que assisti o Jamel Debouze em Amelie Poulin  passei a prestar atenção no ator. Não por acaso, o último filme que assisti no Brasil antes de vir filmar 360 foi Fora da Lei, filme Francês/Argelino que concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro este ano, no qual Jamel faz o protagonista.    

Há sete anos encontrei-o por acaso num bar em Paris e fomos apresentados. Em nossa rápida conversa, eu o informei: "Um dia vamos fazer alguma coisa juntos, anota aí". Ao ler no roteiro que havia um personagem chamado "Algerian Man", mesmo sem ter lido a história ainda, seu nome me veio a cabeça imediatamente. O problema é que o homem, uma mega celebridade na França, estaria no meio de uma turnê de um novo espetáculo, então achei que dificilmente toparia o convite. Para a minha surpresa, talvez por se tratar de um papel romântico e triste, o que para um comediante pode ser interessante, ele remanejou algumas apresentações e entrou na barca. Ao encontrá-lo em Paris, há duas semanas, ele me lembrou da promessa que eu havia feito depois de algumas taças de vinho. A vida dá voltas; 360 está aqui  para provar. 

Vou poupar os elogios a Jamel, para que este texto não pareça chapa branca, mas a energia que cabe em 1,60 m é inacreditável. Quem der uma olhada no vídeozinho postado aqui, onde estou mexendo numa grua e sendo avacalhado pela equipe, verá que no início, ao terminar de falar com Jamel, ele não volta andando para a sua posição, sai correndo. Não estávamos atrasados, é que o camarada é assim mesmo; uma usina atômica.

Jamel faz um dentista muçulmano obcecado por uma mulher infiel (que é como os muçulmanos chamam o resto da humanidade). Com quem ficar? Com Alá ou com a mulher?  Este é o conflito do seu personagem. O próprio Jamel me contou que deveria ter se casado com uma namorada portuguesa e católica, mas, por pressão das duas famílias, acabaram se separando. Por esta razão ele conhece na pele o drama do seu personagem e disse que para a geração de franceses de ascendência argelina ou marroquina, como ele, esta é sempre uma grande questão. Apesar de eu não acreditar em bruxas, gosto muito quando estas coincidências acontecem.

O desfecho da história do dentista se passa em seu consultório durante uma consulta.  Ao ver uma aliança na mão da sua amada, sua assistente, ele se distrai e sem querer machuca o paciente com uma agulha. Sente-se mal pela distração e percebe que é a hora de resolver a questão, e então, enquanto a anestesia faz efeito, chama a assistente num canto para uma conversa. A assistente, que é casada, está interessada no patrão e esperando que ele se declare (duplamente infiel, a moça). A cena deveria mostrar esta tensão e o conflito dos dois.  

Ensaiamos umas duas vezes e começamos a rodar. Num dos primeiros takes, Jamel, sem querer, deixou cair a bandeja de instrumentos e Dinara, a atriz que faz a assistente, tomou um susto. Ele pediu desculpas com a câmera rodando, não sei se para mim ou se para o paciente e continuou a cena. Gostei do acidente e do susto, então, resolvemos incorporá-los à cena. Rodamos mais uns dois takes, até a hora em que ela deveria abrir uma gaveta, mas a gaveta emperrou. Jamel, sem sair do personagem, foi até o armarinho para ajudá-la e sem querer se espremeram num canto da sala raspando o corpo um no outro. Ele usou o contato, sentiu o cheiro dela quando ela cruzou em sua frente, ficou desconcertado por alguns segundos e voltou ao seu texto. Foi muito bom, então, no take seguinte, incorporamos também o problema da gaveta e o esbarrão. Mais para frente, ao preparar a seringa, Dinara quebrou a tampinha que protege a agulha e se assustou. Mais um erro que entrou no repertório. Finalmente, num outro momento, a máscara que Jamel usava na hora de dar a anestesia saiu do seu nariz, então Dinara se debruçou sobre o paciente para recolocá-la; seus dedos tocaram de leve o rosto do "patrão”. Sorrisos, olhares e mais tensão. O gesto foi incorporado também, claro.   

Nos últimos takes que fizemos a cena toda passou a ser sobre a seqüência de erro dos dois; tudo foi sendo marcado e repetido como um pequeno balé. Estas besteirinhas levemente cômicas provocavam olhares entre eles como um diálogo sem palavras que o paciente, ali com a boca aberta, não estava percebendo. Tensão discreta e romântica. “Lovely”, disse Paula, continuista inglesa, ao meu lado. Uma cena inteiramente resolvida graças ao que poderia parecer problemas. 

Não vou contar como é o desfecho desta ceninha (14 pilas para quem quiser saber), mas a maneira como ela foi sendo encontrada me deixa cada vez mais interessado em ir para o set todas as manhãs, com um plano na cabeça, mas muito disposto a subvertê-lo. A Andrea, minha sócia, diz que sou especialista em dar tiro no próprio pé, mas já desisti de tentar criar o filme no papel, faz tempo. Assumi minha infidelidade, as minhas próprias idéias ou minha burrice para conseguir planejar tão detalhadamente. Simplesmente, não tenho controle sobre o mar da minha cabeça, então só me resta surfar na onda que aparecer na hora. Equipado com atores como o Jamel e Dinara, o risco de escorregar e tomar um caldo fica muito menor, claro, e dispensa parafina.

Viena 01/05/2011

13 comentários:

  1. Estou adorando sua "onda"

    Se joga!

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  2. Lindo! Mais uma história do 360.
    O Blog está demais Quico. Amei o vídeo da Grua.
    E a cara do Adriano?? hahaha

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  3. Adorei esses aproveitamentos de cena. E ao meu ver, tem que ser assim mesmo, não precisa seguir a risca o que está no papel. Tem erros que sai melhor do que o acertado. Ansiso pra esse filme.

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  4. Fernando tu é o cara, eu espero um dia fazer filmes contigo idem, teu blog é uma tremenda aula de cinema,humildade, e de ser humano.
    seu fã

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  5. rs. até ler esse texto pensava que Jamel Debouze era o gaffer pela sua atitude no vídeo da grúa.

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  6. Acho que por isso mesmo um roteiro deveria ter sempre descrito o sentimento mais do que a ação... ou o mix de sentimentos. E as ações irem saindo naturalmente. Muito legal o blog Fernando, adorei.

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  7. Adorei os comentários tb ...Concordo plenamente com o Frank e a Marta

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  8. ``Acho que por isso mesmo um roteiro deveria ter sempre descrito o sentimento mais do que a ação``

    Me deu uma ideia, vou começar a fazer roteiros assim oh. humm/

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  9. Fernando, tudo bem?
    A turma de Produção Audiovisual quer te colocar numa roda de perguntas. Gostaria de saber como procedo com esse convite? Aos cuidados de quem? pelo faleconosco da O2?
    Desculpe invadir seu blog, mas achei que poderia ser um caminho.

    Obrigada e parabéns sempre pelo trabalho!

    Sara Pavan
    spgescult@gmail.com

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  10. Parabéns Fernando, muito bom esse blog. É uma oportunidade unica de acompanhar a produção do filme, já havia acompanhado seus relatos no 'Ensaio sobre a cegueira' e estou aqui de novo acompanhando e achando tudo ótimo(apesar do meu conhecimento supérfluo de cinema)!

    Boa sorte com essa salada de atores! Abraços!!!

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  11. Linda maneira de incorporar o improviso a Arte!

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  12. muito massa esse blog!
    Não sabia q o Jamel estaria no filme
    parabéns!
    bom ator ele é =)

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