Um flashback: Desembarquei em São Paulo no primeiro domingo de junho e na segunda estava na ilha de montagem com o Daniel Rezende. Ele havia começado o trabalho cinco semanas antes, então, já havia uns 50 minutos de material pré-montado para ser assistido. Vi cenas, ou blocos de cenas, isoladas sabendo que essa ainda não era a hora de dar palpites, mas sim, dar espaço para o montador.
Durante as três semanas seguintes, passei por lá todos os dias para falar sobre o que ele ainda estava fazendo ou o que iria começar no dia seguinte, sempre pegando leve, no espírito de deixá-lo fazer seu filme. Tanto como o roteirista, o montador tem um lado autoral e quando se tem um bom autor na sala de montagem é besteira não deixá-lo mostrar a sua versão do filme. A maneira como eu vejo cada cena eu já sei, nada mais sábio do que deixar o Daniel mostrar o que ele estava vendo antes de batermos o martelo no que fazer. Como não sei exatamente onde quero chegar, vou descobrindo no caminho, acabo sendo desapegado à maioria das minhas idéias. Isso funciona bem. Para diretores que já tem todo o filme na cabeça esta mesma regra, de deixar o montador solar, não vale. Claro!
Como tínhamos um roteiro muito amarrado, no qual não se pode derrubar cenas ou inverter a ordem de sequências e, como o filme foi rodado de maneira bastante organizada, o processo de montagem foi ligeiro. No final de junho, 6 ou 7 semanas após começar o trabalho, chegamos a um primeiro corte. Acreditando que poderíamos afinar a montagem em mais umas 3 semanas. Avisei os produtores que o filme ficaria pronto em agosto e não em outubro, conforme o combinado, e que então poderíamos esquecer Berlim, como havia sido dito, e pensar numa estratégia de lançamento ainda para 2011.
Assistir o filme inteiro pela primeira vez gera uma ansiedade angustiante pois, apesar de saber que havia boas cenas e ótimas atuações, às vezes isso colocado junto pode surpreender e resultar num filme fraco. Respirei fundo, apagamos a luz, e o Daniel deu o ‘play’. Esse primeiro corte estava com 2 horas e 15 minutos. Antes da luz da sala ser acesa, ao fim destas duas horas, uma outra luz acendeu, mas na minha cabeça: A luz de pânico, velha amiga. "Muita calma nesta hora" disse o Daniel, tranquilo por já ter visto muito diretor neste PPPP: Pânico-Pós-Primeira-Projeção. Ele encarou a questão de forma profissional e corriqueira. Sabe que a luz de pânico faz parte do processo.
A primeira providência foi escrever para os mesmos produtores e avisá-los que eu estava puxando a tomada da parede: "Vamos parar tudo. Há muito trabalho a ser feito. Voltemos a pensar em Berlim" Nada mais foi dito. Eles me pediram, desesperados, para ver o corte, mas aí o Oceano Atlântico jogou a meu favor. Fizeram planos mas, no final, ninguém teve o impulso de pegar um vôo de 11 horas para assistir 2 horas de um filme em uma TV, ainda mais porque sabiam que eu ainda não estava feliz.
Após mais duas semanas de trabalho havíamos feito bom progresso, o filme já tinha perdido uns 15 quilos (minutos) e com a gordura que se foi apareceu alguma musculatura. Limpar a gordura sempre é um bom truque pois, de fato, por baixo dela há músculo. O problema é que às vezes, misturada com esta gordura, está também o "coração" do filme e ao cortar muito o tempo de um olhar, um momento de silêncio, pode-se levar junto a alma do trabalho. Fazer esta separação do que é gordura e do que é coração é o truque.
Após estes primeiros acertos, mesmo sabendo que faltava muito, mandamos uma cópia apenas para o Peter Morgan, roteirista. Assim que ele assistiu mandou os tradicionais elogios exagerados, típicos de quem fala inglês e junto veio o que chamou de "mil observações". Eram menos que isso mas haviam muitas. Daí em diante, o Peter foi incluído integralmente no processo. Nos 30 dias que se passaram entre o primeiro corte e o corte final trocamos uns 210 emails, fora ‘Skypes’ e muitos ‘Quick-times’ de cenas remontadas que iam para Viena quase todos os dias. O Peter é intenso, participou de tudo como se estivesse sentado ao nosso lado, mas por sorte é democrático também e quando via que uma impressão sua não seria usada, depois de um tempo, aceitava e mudava o foco. Essa foi a melhor colaboração que já tive com um roteirista no processo de montagem. Sua ajuda foi muito valiosa, nos aproximamos bastante e vai ser difícil não trabalharmos juntos novamente. Sei que a sensação dele é recíproca.
Mesmo sem uma versão acabada, como o trabalho avançava bem, resolvemos partir para um ‘sprint’ e finalizar o filme a tempo de pegarmos o Festival de Toronto, no início de setembro. Loucura na verdade, principalmente para o pessoal de som, em Viena. Mas ao saber que em Toronto haveria a chance de vender o filme para um distribuidor americano, que talvez o lançasse ainda em 2011, não pensei 3 segundos e pisamos no acelerador.
Hoje é dia 6 de setembro e eu escrevo de Londres, vindo de Viena, onde terminamos a mixagem quatro dias antes da estréia no Canadá. Assisti a primeira cópia do filme com som ontem. Há 6 erros de imagem, mais uns problemas de som, mas não há mais tempo para acertar. Peço desculpas em Toronto e aviso que é uma cópia provisória. Desistir não é mais possível e nem desejável. Depois desta apresentação corrigiremos.
A minha prioridade agora é mesmo mostrá-lo o quanto antes para tentarmos vender para o mercado americano e convencer os possíveis compradores a lançarem em dezembro e com isso tirar da frente este filme. Não há nenhuma amargura nessa intenção. É questão prática. Me apavora a perspectiva de ter que ficar fazendo promoção de “360” até junho do ano que vem. A vida é para frente. Este está acabado. Que venha o próximo.
Acabei não falando da montagem mesmo, o que ia fazer neste texto. Falo na próxima.
Londres 6/09/2011